Guerra diária, superação e luta pela inclusão do deficiente físico: a história de um Santo

Quando a gente perde algo fisicamente, nós ganhamos uma nova visão da vida.

Érico Brena ou Santo Brena, como é chamado, sofreu um acidente na piscina de casa aos 12 anos de idade, quebrou as vértebras quatro, cinco e seis da cervical, permaneceu por cinco minutos embaixo d’água, teve 15 minutos de parada cardíaca, foi dado como morto e acordou no hospital já sem a maioria dos movimentos do pescoço para baixo. Hoje com 30 anos, ele nos contou sua trajetória, suas histórias, os preconceitos sofridos, o abalo psicológico, seus mil e um empregos diferentes e como ele escolheu viver a plena vida. Também conversamos sobre acessibilidade e a inclusão do deficiente físico no ambiente profissional e da educação.

João de Santo Cristo… Santos

A história de luta pela vida de Brena começou aos 12 anos de idade. O então adolescente brincava na piscina de casa e resolveu dar um mergulho. Após pular na água, ele bateu a cabeça, quebrou três vértebras da cervical e ficou durante cinco minutos embaixo d’água. Ao perceberem a gravidade da situação, as pessoas que estavam no local pediram socorro. Ele foi levado ao hospital, onde teve paradas cardíacas durante 15 minutos e ficou com o coração parado. Assim, esteve basicamente morto durante um tempo, até que os médicos conseguiram reanimá-lo. Naquele momento, ele tornou-se tetraplégico.

A partir de então, o jovem de São José do Rio Preto passou por anos de fisioterapia, psicoterapia, visitas ao consultório psiquiátrico, a queda da ficha que ele jamais andaria novamente, a perda da vontade de viver e a recuperação dessa vontade. Com apenas 30 anos, Santo já viveu de tudo. Trabalhou na área da educação, como telefonista em um banco – uma história à parte –, também trabalhou em uma rádio de Ribeirão Preto, foi comediante, realizando shows de stand up e atualmente, é supervisor de qualidade e empresário.

O apelido Santo, segundo ele, veio de duas partes: seu sobrenome Santos e a música “Faroeste Caboclo”, do Legião Urbana, que fala do personagem João de Santo Cristo. João era santo porque sabia morrer. Érico, por sua vez, fez o contrário. Batalhou e segue batalhando diariamente pela vida, pelo direito de ir e vir em ruas esburacadas, para manutenção da saúde, do trabalho e pelo direito à educação inclusiva. O apelido foi sendo encurtado, até virar somente Santo.

Quando perguntado sobre a adaptação pós-acidente e os impactos no físicos e psicológicos que tiveram sobre o então garoto, ele deu seu relato. “Fisicamente, passei por muita fisioterapia, um processo muito grande. A maior parte do dia era fisioterapia, porque tem um período pós-lesão que é necessário que faça um choque no seu corpo de reeducação física, então teve esse período bem alongado e durou muitos anos. A questão psicológica é que você tem a sensação constante de que vai melhorar, porque cheguei ao hospital sem mexer praticamente nada e em semanas, já mexia cada dia mais os braços”, relatou. Para ele, era a sensação de uma gripe, que acordaria e tudo estaria normal de novo. “Conforme o tempo passa e você entende melhor seu corpo, a ficha cai que não é bem assim. Para mim, caiu uns cinco ou seis anos depois, quando tive uma batalha muito grande contra a depressão, mas felizmente, tive uma família muito presente e amigos muito presentes nesse caminho”, disse Brena.

As pessoas mais importantes na luta diária são sua mãe, que ajuda fisicamente com todas as limitações e segundo ele, sempre foi assim e os irmãos, que ajudaram a encarar tudo psicologicamente e mais recentemente fisicamente. Além deles, alguns bons amigos também. Para Érico, a diferença entre ter ou não uma vida saudável está na rede familiar e de amigos, que estão dispostos a encarar isso física e psicologicamente com a pessoa.

Com o tempo, ele foi desenvolvendo novas habilidades, já que não contaria com boa parte da questão física. Segundo ele, foi trabalhado muito por parte de seus pais o fato de que ele não poderia trabalhar com coisas físicas, tudo teria de ser adaptado, inclusive seu futuro. Sua mãe – que de acordo com ele, sempre ajudou em toda a parte física que ele não pode fazer –, e seu pai sempre mostraram que ele poderia seguir a vida investindo em seu lado intelectual, entendendo que ele não trabalharia com nada que exigisse de seu físico. Desta maneira, também utilizando como uma forma de defesa, Santo desenvolveu uma sagacidade muito grande, especialmente voltada ao humor.

Humorista, youtuber, telefonista e o que mais vier pela frente

Brena sempre encarou tudo de frente, dando a cara a tapa e utilizando sempre seus recursos humorísticos. No âmbito profissional, não foi diferente. Ele já trabalhou de tudo, inclusive fazendo shows de comédia nas noites de Rio Preto. Aproveitando o bom humor, criou um canal no YouTube, o “Funciona”, onde ele relatava experiências cotidianas de um deficiente físico – assim como temas de atualidades – e trazia as reflexões de que algo que não seja um obstáculo para um não deficiente, como uma rampa mal feita, pode tornar-se um pesadelo na vida de um deficiente físico. 

“Desenvolvi o humor como uma espécie de defesa pós-acidente”, afirmou. “O bom humor ajuda a lidar com a situação e ajuda as pessoas que estão no mesmo recinto a aceitarem melhor a situação sem ter muitos dedos, trazendo uma leveza para que isso se torne mais uma cicatriz do que algo definitivo na vida”. Ele expõe suas cicatrizes na conversa, deixando claro que nada disso é o fim ou algo assim.

Ele parou com o canal do YouTube quando mudou de cidade, vindo pra Ribeirão Preto trabalhar com rádio e televisão. Como ele fazia por diversão e o trabalho consumiu muito de seu tempo, não deu para continuar. “Acabei focando muito no trabalho e em grandes batalhas de adaptação, mas o canal começou a ter uma movimentação depois disso e existe a possibilidade de voltar no começo do próximo mês, talvez em outra plataforma. Os shows de comédia são uma consequência. Hoje com a pandemia, nem penso muito nisso, mas penso no canal, por ser uma maneira de levar conteúdo para as pessoas neste momento”, disse.

Como mencionado anteriormente, Santo Brena já trabalhou de tudo, inclusive em um banco. Ele relatou com mais detalhes essa experiência, como cresceu na empresa, assim como seus desafios e maiores problemas: “Depois de dois meses [como telefonista], eu já estava vendendo e acabei trabalhando três anos no banco. Cheguei inclusive a brigar com meu chefe para que ele impusesse metas de vendas para mim, porque não existiam metas de venda para deficientes no banco”, relatou. Segundo ele, a real batalha no ambiente profissional sempre foi mostrar que o deficiente não é incapacitado por causa da questão física. “A deficiência é uma cicatriz, não uma incapacidade. Essa é uma política que deve ser trabalhada. A vaga para o deficiente no mercado de trabalho não resolve, o que resolve é entender o que ele tem de capacidade”.

O deficiente é frágil? Não, senhor!

Como dito, a luta de Santo sempre foi para mostrar que sua única limitação seria para trabalhos físicos. Intelectualmente, ele não precisava ser menos cobrado do que qualquer outro colega de trabalho não deficiente. Sua capacidade era exatamente a mesma ou até maior que a de outras pessoas. Após ser questionado sobre a maior dificuldade para ele no ambiente de trabalho, Érico não mencionou acessibilidade, comentários maldosos nem nada do gênero. “Preconceito. Não de ofensa e xingamento, mas falta de conhecimento e de saber lidar com um deficiente ali, naquele local. Sempre o deficiente é frágil, não pode nada, tem que relevar tudo e é um coitado”. Ele quer ter a oportunidade de encarar tudo de igual pra igual: “o preconceito velado pela falta de conhecimento gera um grande problema”, disse.

Muita gente tem medo de perguntar coisas para uma pessoa portadora de deficiência, com medo de ofender. Para Santo, não há pergunta ofensiva. Ele quer que entendam que a deficiência física é uma condição, não uma doença. “As pessoas ficam muito receosas em me chamar para algum lugar. Ficam pensando se eu conseguirei ter acessibilidade e pedem desculpas se sua casa não é adaptada”, disse Brena. “Mas eu sei que não podemos viver numa utopia onde tudo estará adaptado para os deficientes. É um processo de evolução do mundo e quanto mais gente souber disso, mais legal vai ser”.

Mas apesar de não se ofender com a maioria das perguntas, ele diz que algumas o incomodam, sim. As perguntas mais frequentes quando se está na cadeira de rodas, segundo ele, são “o que aconteceu com você?”, “tão jovem, tão novo. Por que, Deus?”, se “funciona”, o que gerou o nome do canal no YouTube e se ele sente as pernas. Ele particularmente não se incomoda com perguntas, mas os comentários são um pouco incômodos, como segundo ele: “tadinho”, “coitado”, “tão jovem, tão bonito”, “você vai superar, vai voltar a andar”. Para Santo, as pessoas precisam entender, novamente, que é uma cicatriz e uma condição, não uma doença, então nem sempre o deficiente quer estar “curado”. O “coitadismo” o incomoda profundamente, porque ele quer ter as mesmas condições de quem anda e a mesma aceitação e oportunidades.

Assim como seu maior ídolo, Ayrton Senna, ele persistiu, brigou e conseguiu seu espaço no mercado de trabalho. “Hoje eu tenho um currículo cheio e coisas que comprovam minha capacidade, então eu encaro de cabeça erguida. Mas normalmente, a primeira reação quando veem um deficiente é que trabalha lá porque a empresa deu uma oportunidade”, ou seja, não porque mereceu. Para ele, esse é o preconceito mais sofrido no trabalho, a associação da deficiência à incapacidade. O deficiente físico não é incapaz, apesar de precisar tomar diversos cuidados.

As peculiaridades na vida de um deficiente físico

No caso de Érico em especial, estar na cadeira de rodas não afeta sua imunidade, mas ele precisa tomar cuidados para preservar a musculatura que ainda lhe resta em ordem. É necessário realizar acompanhamento de um fisioterapeuta e fazer vários exercícios.

Além disso, ser portador de deficiência física é algo caro. Segundo relato de Brena, é muito caro manter uma cadeira de rodas adaptada e construir uma casa acessível. “Para ter uma cadeira de rodas, apesar de o governo providenciar alguns modelos, no caso de um deficiente que queira uma cadeira melhor para uma vida mais ativa, com uma cadeira mais leve e fácil de locomover e colocar no carro, precisa gastar bastante”, afirmou. “Uma cadeira nacional boa vai custar entre R$ 4.000,00 e R$ 6.000,00. Uma importada chega a 15, 20, 25 mil”, informou. Santo, que mede cerca de dois metros, sofre ainda mais com a adaptação. Ela fica mais cara por estar fora dos padrões de produção. 

A residência adaptada, no entanto, não é custosa se manter, mas é cara e difícil de achar, porque sempre precisa se preocupar com banheiro e degrau. Um degrau de centímetros é a diferença entre um local acessível ou não. Manter ela não é difícil, mas a localização somada à acessibilidade são itens difíceis de se encontrar e deixam o imóvel caro, de acordo com ele.

Também na parte psicológica, ser portador de deficiência traz uma série de problemas, mas a terapia é uma ótima solução. “Realizei por muito tempo atendimento psicológico e psiquiátrico e agora estou retomando. Eu acho que a saúde mental é essencial a todos, especialmente ao deficiente físico, pela necessidade de trabalhar muito as limitações para evoluir, para ter força e para se sentir bem. O impacto do tratamento psicológico foi grande, porque eu deixei uma profunda depressão para viver novamente em sociedade. Foi uma volta à vida. O acompanhamento é de extrema importância para todos”.

Assim como o tratamento psicológico é imprescindível na vida do deficiente físico, a educação, assim como na vida de todos, é fundamental.

We (don’t) need (no) education

A banda Pink Floyd já protestava sobre o sistema muitas vezes autoritário da época imposto em sala de aula. Em 1979, lançaram um dos maiores sucessos da história da música: “Another Brick in the Wall”, single do álbum “The Wall”. Apesar de eles dizerem “we don’t need no education”, como mencionado neste subtítulo, sabemos que todos precisamos e muito de educação (de qualidade).

Neste quesito, tal qual em muitos outros, as pessoas portadoras de deficiência sofrem mais. Não basta permitir que o deficiente físico esteja no mesmo ambiente que os alunos não portadores de deficiência. É necessário não só permitir, mas agir para que o estudante deficiente tenha as mesmas oportunidades de aprender, otimizando seu potencial intelectual, já que não é por ter uma deficiência física que a pessoa é incapaz de algo que necessita da inteligência. Como prova diariamente Santo Brena, é muito pelo contrário.

O tema da educação foi abordado em nossa entrevista. Érico, que demonstra ter posicionamentos fortes sobre tudo, disse que “a educação é tudo, porque o deficiente não vai poder enfrentar o mundo pelo lado físico e vai precisar encará-lo com a inteligência e a aptidão. A educação é a pedra base disso tudo, é o alicerce pra que consigam dialogar e enfrentar um mundo onde a deficiência física é limitante. Se não houver uma educação inclusiva, o deficiente estará fadado a eternamente se limitar. É simples… ou não”.

Como alguém que já passou de tudo devido ao acidente que sofreu ainda muito jovem, Santo viu o desenvolvimento da Educação Especial ao longo dos anos. Ele passou sua adolescência na cadeira de rodas, trabalhou na área da educação e seus pais sempre foram desta área. “Os planos de inclusão funcionaram muito bem com os deficientes, com a tecnologia permitindo que o deficiente tenha dinamismo e acesso a muita coisa. Mas a grande diferença está na inclusão da pessoa com deficiência. Na época do acidente, não tinha política forte de inclusão, mas eu dei a sorte de ter pais ligados à educação e eles passaram por essa situação juntos comigo, integrando o deficiente à realidade do estudo. O resto está sendo proposto mais pela tecnologia, o que permite um grande avanço”.

Para finalizar o tema da educação inclusiva, tema que Brena enfatiza muito para dar mais possibilidades de futuro aos deficientes físicos, perguntamos sobre como ele enxerga que a acessibilidade é tratada pelos profissionais da educação. Na opinião dele, é difícil generalizar como a questão da acessibilidade é tratada pelos profissionais, porque profissional da educação se esforça e se dedica para incluir o deficiente dentro desse processo de educação. Porém incluir não é deixar a pessoa no mesmo ambiente, mas sim fazer com que ela possa participar e não aprenda sozinha, sendo deixada de lado. Esse é o grande segredo, porque a verdadeira inclusão traz a troca de experiências e a vivência que fazem o não deficiente conhecer as limitações alheias, assim como faz com que o deficiente se esforce ainda mais para vencer suas limitações e igualar as coisas. Isso é chave, de acordo com Santo.

A palavra certa que faça o mundo andar

Assim como o autor da frase, Herbert Viana, vocalista dos Paralamas do Sucesso, que também vive em uma cadeira de rodas, Érico é uma pessoa comunicativa. Tendo trabalhado na área da comunicação em diversos projetos, nosso João de Santo Cristo às avessas não deixou de passar mensagens e dicas para quem está iniciando a vida em uma cadeira de rodas.

Primeiro, quando questionado sobre os melhores e piores lugares que já visitou no quesito acessibilidade, ele disse: “local exemplo de acessibilidade não tem, porque o conceito de acessibilidade é novo e todos estão constantemente evoluindo. Poderia citar alguns países, como Canadá, mas que tenha visto, não tem uma experiência”. Já no pior exemplo, “qualquer centro de cidade, porque são antigos – e não digo que não deveriam ser –, mas paralelepípedos e pedras são inimigos mortais de pessoas com limitação de movimentos”.

Ele também ressaltou que não existe uma maior dificuldade em estar na cadeira de rodas, já que “a maior dificuldade está todos os dias, quando escolhe encarar um mundo sem adaptação, onde as pessoas não se preocupam com você e você não existe, a não ser que esteja na frente delas. Um mundo onde precisa implorar o básico como um ônibus, uma calçada ou um banheiro adaptado. Ir a um bar à noite e descobrir que ele não tem banheiro adaptado ou rampa, por exemplo”. Ele finaliza dizendo, aproveitando seu aflorado senso de humor, que “todo dia é uma grande batalha, então não é só matar um leão, é matar um leão estando pelado com um pedaço de picanha pendurado no pescoço”.

Para finalizar, Érico Brena, o Santo de nossa história, deixa uma mensagem para quem esteja passando pelo que ele já passou ou quaisquer outros problemas. Até porque para ele, não existe problema maior ou menor, apenas os de cada um. “Tudo é passageiro. Quando a gente perde algo fisicamente, nós ganhamos uma nova visão da vida. Disseram para mim no hospital que eu tinha duas opções: não aceitar, me jogar na cama, me dar por vencido e morrer assim ou mostrar ao mundo minha capacidade, meu brilhantismo e que a cadeira de rodas é só um acessório. Ou você vive, ou você para de viver”. Ele escolheu viver e nós contamos sua história, que merece ser amplamente conhecida por todos, porque o deficiente nada mais é que um de nós: uma pessoa com suas cicatrizes que precisa de espaço no ambiente profissional e também na educação.

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